Como se diz por aí, João Siqueira era mão-fechada, avarento, canguinha, mão-de-vaca... O era de maneira irremediável, como só quem havia passado por momentos de muita necessidade na vida conseguia ser.
Mesmo com mais de 70 anos e dono de muitas muitas posses, a fome na infância lhe imprimira tamanho trauma que vivia como se não tivesse certeza da próxima refeição. Racionava tudo o que podia, juntava pedacinhos de sabonete, tomava banho frio e comia pouco, muito pouco.
Sabe que por conta disso sepultara o casamento com Dolores, mãe de seus dois filhos. Sofria e, talvez, no íntimo, quisesse ter tido forças para mudar, mas sempre fora orgulhoso demais para admitir.
Acreditava que superar tantas adversidades tinha lhe trazido força e honradez e, de fato, João era um homem correto. No entanto, sua dureza o impediu de viver plenamente todas as bênçãos que a vida havia lhe dado. Não perdera apenas Dolores, perdera todas as alegrias da vida.
Embora visse os filhos de vez em quando, seu relacionamento era protocolar. Tinha orgulho dos homens que criara, mas não sabia como agir quando estavam juntos, não podia mais dar-lhes ordens e se aborrecia quando duvidavam das coisas que falava.
Com o passar do tempo, seus filhos também se casaram e tiveram filhos. Mas João se sentia ainda mais desconfortável no papel de avô. Se ressentia da falta de respeito dos netos e das liberdades das noras.
Eventualmente, também seus filhos deixaram de visita-lo. Tinham desculpas plausíveis na vida corrida, nas esposas, nos netos, nos cachorros, na chuva pesada.... Também não sabia mais de Dolores e se ressentia pelo seu “desaparecimento”. No começo, tinha certeza que voltaria e pediria perdão.
Sentia-se injustiçado e esquecido. Como a uma pessoa de tanto valor fora reservado um destino tão solitário?!
Os filhos preocupavam-se com o bem-estar do pai e tentaram convencer-lhe a aceitar ajuda nos trabalhos de casa. Chegaram a contratar uma faxineira, mas João a achava preguiçosa e se aborrecia com sua presença. Demitiu a pobre na segunda semana.
Tinha dores horríveis na coluna, mas continuava a varrer, lavar, passar, desinfetar, cozinhar, sofrer.... Por outro lado, se sentia útil, capaz, até orgulhoso!
Certo dia acordou sentindo o corpo pesado e tentou se mexer, em vão. Via apenas o teto do quarto, já devia ser tarde. Tentava, mas o corpo não obedecia, nem mesmo o pescoço se movia, estava completamente travado.
Ficou com raiva, xingou o vento, amaldiçoou todos os inimigos da vida e a própria vida. Sentia fome e sede, o que lhe dava ainda mais raiva. Só conseguia ver as sombras se mexendo no teto do quarto, vendo o tempo passar.
Tinha esperança de que os filhos viessem socorrê-lo, quem sabe até Dolores, pudesse aparecer de surpresa! Os dias iam passando, a esperança ia se desfazendo e a tristeza tomava conta. Chorava como podia, lágrimas secas e trêmulas.
A cada manhã tinha de certificar-se de que estava vivo, beliscava a coxa e abria os olhos com dificuldade. Os lábios estavam grudados e a garganta muito seca, já não conseguia falar.
Pensou em toda sua vida e em como o sofrimento sempre lhe havia acompanhado. A fome constante na infância, o trabalho árduo, o fim do casamento e agora o terrível fim solitário.
Uma sensação de orgulho lhe tomou o corpo. Verteu uma última lágrima microscópica e pensou, João Siqueira, é um homem de bem!
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