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Mostrando postagens de maio, 2020

Um Homem de Bem - Thaís Dorneles Pinto

Como se diz por aí, João Siqueira era mão-fechada, avarento, canguinha, mão-de-vaca... O era de maneira irremediável, como só quem havia passado por momentos de muita necessidade na vida conseguia ser. Mesmo com mais de 70 anos e dono de muitas muitas posses, a fome na infância lhe imprimira tamanho trauma que vivia como se não tivesse certeza da próxima refeição. Racionava tudo o que podia, juntava pedacinhos de sabonete, tomava banho frio e comia pouco, muito pouco. Sabe que por conta disso sepultara o casamento com Dolores, mãe de seus dois filhos. Sofria e, talvez, no íntimo, quisesse ter tido forças para mudar, mas sempre fora orgulhoso demais para admitir. Acreditava que superar tantas adversidades tinha lhe trazido força e honradez e, de fato, João era um homem correto. No entanto, sua dureza o impediu de viver plenamente todas as bênçãos que a vida havia lhe dado. Não perdera apenas Dolores, perdera todas as alegrias da vida. Embora visse os filhos de vez em qua

É um pedaço de pão - Ana Luiza Braga

  É um pedaço de abraço, de carinho, de sorrisos sinceros que é preciso. As almas precisam de alimento. O corpo está bem alimentado há tempos. Ele conduz a morte dos seus companheiros, a perseguição de inocentes e a decadência de atitudes. Muitas pessoas agem com o corpo e não com a mente. É um pedaço de consolo, de amor, de conhecimento das coisas boas que é preciso. Ninguém precisa ouvir mais sobre a força corporal de fulano. As pessoas necessitam ouvir que a força da alma delas é gigantesca. A alma te leva a lugares que ainda não foram descobertos ou estudados, mas, eles existem e estão presentes em todos.   

Oco - Laeticia Monteiro

Fazia tempo que sentia aquele oco.  Foi-se o tempo em que sentiu-se inteira.  Sua criação há muito lhe traíra e fora difícil – não: fora impossível tornar ao eixo. Se lhe dessem um tapinha no peito, ou mesmo nas costelas, escutariam seu corpo reverberar em um barulho insosso, tal qual uma parede oca. Só tinha certeza de que ali ainda havia algo, pois sabia que o som não se propagava no vácuo. Tinha sido tão lindo, tão eterno enquanto durava. Mas aí desmoronou. Não sabia, antes do ocorrido, que até as deusas choravam por um coração partido.  Dera à luz ao amor e à vida, mas agora sentia-se vazia dos dois. Puxou uma mecha de seus cabelos de crepúsculo para trás das orelhas. Tomou das Moiras a agulha e o fio do destino. Tomou de Ares um de seus vários punhais e aí rasgou a golpes duros o próprio peito. O sangue – que já não corria nas veias, tendo apenas forças para vaguear – escorreu, grosso e lento, banhando as mãos e as vestes longas. Diante do espelho e sob seu o

Breve retrato de uma personagem - Juliana Gama

Paulínea Regina Andrade é uma mulher de 46 anos, estatura mediana, magra, de poucos cabelos lisos, muito lisos e grisalhos, cortados na metade do pescoço. Costuma vestir-se com calça jeans e camiseta. Era impressionantemente inteligente. Arquiteta, havia trabalhado com outros arquitetos e artistas de renome. Participou de grandes projetos nacionais. Na sua adolescência e juventude se destacava pela ousadia, pela criatividade, brilhantismo e audácia. Foi uma jovem livre e à frente de seu tempo. De pensamento rápido, constrangia algumas pessoas que se acercavam a ela. Paulínea Regina era fora da curva.  Com o passar dos anos foi ficando cada vez mais… Muitas vezes foi incompreendida, de tão inteligente! Muito viva, seus olhos brilhavam. Era como uma antena multisensorial onipresente que captava tudo no corpo. Dava respostas rápidas e precisas sobre a intimidade das pessoas, sem ninguém dizer nada. Muitas pessoas se apaixonaram por ela, mas sua personalidade poliédrica não se e

Mestre Arnaldo quem me deu (do Poema Pedra de Pedra de Pedra de Arnaldo Antunes)

"Onde planta não prospera, prosperaria o amor?" Onde árido seco inerte, onde há medo e onde há dor? Planta carece adubo, chuva, terra, sol também Planta precisa de amor! Se planta dele carece e sem ele não há vida Como brota planta e flor? Vem-me um dilema sem fim   desses que menino teima, insiste e chega a ficar até triste, nasceu o ovo ou a galinha  primeiro? Pergunta com dedo em riste E veja lá! Veja bem! Essa cisma nem é minha! Mestre Arnaldo quem me deu! De amor que não prospera De planta que ali não vinga Ele lá isso falou Ele lá isso me disse Eu aqui encasquetei A sua cisma pesquei Com água e tempo reguei E dobrei a curva além Pr'eu falar de amor também.