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Postagens

Mostrando postagens de novembro, 2019

Dona Pura - Michela Ribeiro

D ona  Pura bateu na minha porta, pedindo emprestado o martelo. O quadro da Santa Ceia tinha caído da parede e ela precisava recolocá-lo. Também queria saber se eu tinha um prego mais forte. Ela não entendia porque ele tinha caído, já que o prego que o segurava era bem grosso. Achou que pudesse ter sido porque ontem foi o dia das bruxas e ela havia postado uma foto dela, que fez em um aplicativo, de Minnie Maldita. Fiquei curiosa pra ver.   D ona  Pura é uma graça: uma espanhola de 90 anos, de nome Purificación, que já viveu de tudo nesta vida. Saiu fugida da Europa, escapando da guerra, criou seis filhos passando roupa pra fora, enfrentou dois cânceres com um incrível bom humor. Quando ela nos encontra no elevador, adora contar as histórias do passado ,  e a gente demora para se desvencilhar e cumprir os horários de nossos compromissos. Desde que ela aprendeu com seu bisneto a mexer nos aplicativos e redes sociais, já angariou centenas de seguidores. A postagem da Minnie

Sextou? - Talita Pinheiro

O despertador tocou às sete em ponto. Ela levantou-se e, antes mesmo de desligá-lo, deu uma bela espreguiçada.  Seguiu para o banheiro e, ao encarar-se no espelho, abriu um largo sorriso, daqueles em que, involuntariamente, os olhos se fecham como se sorrissem junto. Então colocou para tocar sua playlist preferida, chamada #sextou, e, enquanto tomava um banho quentinho, deu vida a uma cantora de chuveiro muito mais animada que um puxador de trio elétrico do carnaval baiano.  Ao final do banho, presenteou-se com uma ducha de água gelada, enquanto novamente sorria com os olhos fechados. "Agora sim estou pronta para encarar esta segunda-feira!", pensou.

RESTAURANTE - André Lima

Havia duas pessoas em um restaurante. Uma delas se chamava Adriana. Ela era loira, tinha olhos azuis, e morava no centro, o bairro de ricos. Porém, não gostava da vida de grã-fina que levava, queria mesmo era ser livre, sair com os amigos e não ficar apenas trancada em casa. Com sua persistência, havia conseguido convencer o pai que precisava sair um pouco, e lá estava ela.      O outro era um rapaz negro e alto, tinha olhos castanhos, e, ao contrário de Adriana, fazia o que desse na telha, para não atrapalhar a mãe solteira que tinha outros três pirralhos para cuidar. O seu nome era Gustavo. Ele e Adriana eram amigos desde o primeiro grau, eles gostavam praticamente das mesmas coisas, apesar de levarem vidas muito diferentes.     O restaurante era muito bonito. Havia velas ao invés de lâmpadas, as mesas eram cobertas por um pano branquíssimo, o cardápio muito chique e os garçons eram os mais profissionais das redondezas, todos muito bem uniformizados e treinados para atender as

Catarse - Max Wolosker

João fingia que não se importava, mas era apenas uma fachada que assumia para nela se refugiar caso o desenrolar dos fatos não conduzisse ao desfecho pelo qual tanto asiava. Paulatinamente, a certeza começou a se cristalizar e uma discreta euforia passou a se insinuar à medida que os números iam chegando no noticiário da TV e nos tuítes que surgiam cada vez que ele atualizava a tela do celular compulsivamente, ao ponto de deixá-la engordurada e pegajosa. A longa noite parecia estar chegando ao fim. Amanhecia, varrendo as sombras que haviam escapado de um passado que de tempos em tempos se faz presente pela falta de coragem (ou de disposição, ou de ambos) que se tem de enfrentá-lo e sepultá-lo definitivamente. Esporadicamente mas com uma frequência cada vez maior, gritos entravam pela janela. Há 4 anos esses gritos magoavam, hoje reconfortavam. Quando a certeza se instalou de vez, João não se conteve: pegou a carteira, as chaves e saiu às ruas em busca de algum lugar para com

Café na VERBAL

Aqui na VERBAL sempre tem café. É um pouco do meu jeito de oferecer algo a mais, para além do meu trabalho, um carinho adicional. Quase todo mundo toma café, exceto dois alunos que, como eu, em suas idades, também não tomava. Toma-se bastante café na VERBAL, seja para acompanhar um processo de criação, seja para soltar a língua no inglês. Tem gente que toma café porque está com sono, tem gente que toma para despertar, tem gente que toma por que chegou irritado e precisa se acalmar e tem que toma para deixar o mundo lá fora e sentir que chegou, tem quem tome café com um biscoitinho porque não deu tempo de tomar café da manhã. Às vezes, a gente toma café para celebrar alguma coisa, o fim de um livro, o começo de outro, um texto divertido, ou um super pauleira, um momento de riso ou um outro de emoção profunda que pede uma pausa. A gente toma café! Cada um toma de um jeito e eu tento decorar o jeito de cada um, mas me embanano constantemente. Ainda assim, tent

Cortam lá fora - Kelma Sousa

Cortam lá fora e aqui está tão triste. Impotência de quem vê, de quem corta. Responsabilidade de quem? Sua, minha ou de ninguém? Cortam lá fora e aqui o que aflora? Desesperança. É a vida se esvaindo aos poucos  de uma forma tão  rápida. Quando já se vê, nem se vê mais. Cortam lá fora, continuam cortando,  e  aqui dentro?  s angrando. Quem ousa inerte assistir ao “espetáculo” da morte? A vida é tão f ugaz. As árvores que abrigavam  o s pássaros já não abrigam mais. As folhas verdes continuam verdes, esperança no chão, elas não voltam mais não. Cortam lá fora e agora o aqui é imensidão, deserto de vida. Quem provocou tanta ferida em meu coração? Cortam lá fora, cortam aqui, continuam cortando, eles têm  d e seguir.  Cortam  lá fora  e aqui eu só posso assistir. Quem poderia impedir? Mais um minuto. Eles continuam a cortar e dos pássaros o canto ouço a entoar um choro de desespero: “eu perdi meu lar”. Cortam lá fora e eu aqui dentro tenho de terminar.