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Oco - Laeticia Monteiro




Fazia tempo que sentia aquele oco. 
Foi-se o tempo em que sentiu-se inteira. 
Sua criação há muito lhe traíra e fora difícil – não: fora impossível tornar ao eixo.
Se lhe dessem um tapinha no peito, ou mesmo nas costelas, escutariam seu corpo reverberar em um barulho insosso, tal qual uma parede oca. Só tinha certeza de que ali ainda havia algo, pois sabia que o som não se propagava no vácuo.
Tinha sido tão lindo, tão eterno enquanto durava. Mas aí desmoronou.
Não sabia, antes do ocorrido, que até as deusas choravam por um coração partido. 
Dera à luz ao amor e à vida, mas agora sentia-se vazia dos dois.
Puxou uma mecha de seus cabelos de crepúsculo para trás das orelhas. Tomou das Moiras a agulha e o fio do destino. Tomou de Ares um de seus vários punhais e aí rasgou a golpes duros o próprio peito. O sangue – que já não corria nas veias, tendo apenas forças para vaguear – escorreu, grosso e lento, banhando as mãos e as vestes longas.
Diante do espelho e sob seu olhar trêmulo, localizou na cavidade o amontoado amorfo que só podia ser o que restara de seu coração.
Puxou-o para fora com a pouca gentileza que lhe sobrara, pois temia romper o que quer que fosse que milagrosamente ainda o prendia ali.
Espremendo os olhos em concentração, pôs-se a costurá-lo, remendá-lo. Cerziu retalhos do mundo dos vivos – para trazer de novo o fulgor do sol e a alegria da brisa fresca – entremeados a pescados do rio Lete – porque era preciso de uma alguma dose de esquecimento para seguir adiante.
Foi com as próprias mãos que criou a vida e fez dela um presente para o causador de seus tormentos.

Mas também seria com as próprias mãos que teceria para si um novo coração, uma nova força e um novo destino.

Créditos da foto: Amirali Mirhashemina, do site unsplash.com

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