Pular para o conteúdo principal

Breve retrato de uma personagem - Juliana Gama

arvore méxico 2020
Paulínea Regina Andrade é uma mulher de 46 anos, estatura mediana, magra, de poucos cabelos lisos, muito lisos e grisalhos, cortados na metade do pescoço. Costuma vestir-se com calça jeans e camiseta. Era impressionantemente inteligente. Arquiteta, havia trabalhado com outros arquitetos e artistas de renome. Participou de grandes projetos nacionais.

Na sua adolescência e juventude se destacava pela ousadia, pela criatividade, brilhantismo e audácia. Foi uma jovem livre e à frente de seu tempo. De pensamento rápido, constrangia algumas pessoas que se acercavam a ela. Paulínea Regina era fora da curva. Com o passar dos anos foi ficando cada vez mais…

Muitas vezes foi incompreendida, de tão inteligente! Muito viva, seus olhos brilhavam. Era como uma antena multisensorial onipresente que captava tudo no corpo. Dava respostas rápidas e precisas sobre a intimidade das pessoas, sem ninguém dizer nada. Muitas pessoas se apaixonaram por ela, mas sua personalidade poliédrica não se encaixava na rotina certinha das relações amorosas.

No estúdio, todos escutavam atentos a suas observações. As idéias eram alucinantes!  Arranha-céus de madeira,  um domo que cobria um bairro inteiro,  fazendas verticais gigantes. Ideais para um conto do Realismo Fantástico, mas inoperáveis no mundo concreto. Os engenheiros não sabiam como construí-las. A cada dia que passava, todos a observavam e se entreolhavam curiosos e perplexos.

Aline, sua irmã, lembra-se  de escutá-la comentando sobre os cabelos negros de uma amiga. Um dia Paulínea disse a essa amiga que ela lembrava o Bob Marley. Todos riram… Não se parecia em nada! Mas Bob Marley se fez presente no rosto, cabelo e na fisionomia da amiga. Outro dia, na sala de espera do consultório de seu médico, o Dr. convidou-a a entrar, mas ela ficou plantada na porta. Não queria entrar de jeito nenhum! Rapidamente contou uma piada. Todos riram, mas não houve consulta.

Paulínea Regina teve, por todos esses anos, controle sobre os fatos, sobre os argumentos. Ninguém duvidava dela. Assim seguiu na vida… Espirituosa, fazia os outros rirem para conseguir o que fosse. Esse foi o seu lugar seguro, foi o que a manteve vivaz! Entretanto, às vezes, quando chegava em casa, queria estar só. Sozinha, ocupava-se com seus pensamentos. Sua mente não parava: um mundo fértil, absurdo e sem limites. 
Aos poucos, seu brilhantismo foi ficando fosco, suas ideias perderam o sentido, seus projetos, impraticáveis. Suas certezas desfaziam-se. As formas coesas de seus projetos transformavam-se em areia e o tempo se desintegrava. Um dia, com o pensamento a mil,  teve várias lembranças, nem todas boas. Imagens de sua vida passavam pela cabeça mas não emocionavam. Pertubardor!
Repentinamente Paulínea Regina parou pela primeira vez. Saiu ao jardim. Do jardim de sua casa, a única beleza do dia era a neblina. Caminhou descalça pela terra. Estava absolutamente sozinha. Perfeito! Deitou-se no gramado e olhou o céu por entre os galhos altos das árvores. Estava em paz. Aos poucos sentiu o seu corpo leve desfazendo-se para se misturar aos galhos finos caídos no chão. Deixou de existir.

Foto: tirada por mim de uma Jacarandá na Cidade do México, 2020.
“But we’re never gonna survive unless we get a little crazy”
Texto realizado como exercício do curso de escrita criativa na Verbal Assessoria Linguística em maio de 2020.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Árvore - Ana Keller

  Tenho de sair porta afora! Quase como se, se não o fizer, interrompo o fluxo respiratório. E não apenas porta afora, mas árvore a dentro. Qual será dessa vez? O templo no qual vou entrar? Ah ! Lá está ela ! Parece ferida no tronco. Não, não é uma ferida. É uma cicatriz. Uma cicatriz aberta. Mostra que a criatura já superou a dor, mas continua exibindo o tamanho do ataque que sofreu. Quando Ela, no topo, se abre em galhos, esses são robustos ao invés de elegantes como os que  costumo apreciar. Como são os cactos nos desertos. Ah ! Entendo a experiência desse Templo em que penetro agora ! Esqueço-me de onde venho e nem me importo para onde vou. Respiro a abundância do meu dentro. Sinto as carnes, as veias e os nervos incharem-se. Está imenso o meu interior. E não é preciso pensar, nem elaborar nada. Basta deixar a língua passear nos lábios e saborear essa montanha de Eu que Sou entre as paredes do meu Templo. O rito prossegue e sinto toda a gente que Sou sendo abençoada. Circulo desde

É preciso ir para algum lugar? - Vera Barrozo

  É preciso ir para algum lugar? Parei. Aqui. Ao sol. Nessa cidade que não conheço... bebo uma água com limão. Pessoas caminham...  Passam. Estar...  Estar aqui.  É Paris. (Foi tanto tempo pra chegar aqui!) Agora cheguei. Nessa mesa... E já cá não estou. Porque as letras, os rumos, os objetivos de um itinerário turístico escrito por alguém – mais provavelmente dezenas – ou centenas – de pessoas me pretende dizer o que devo fazer para... (ter estado aqui) ... agora, que cheguei aqui. Não basta estar. Não basta respirar. (Se estou em Paris, há um roteiro inteiro: enorme, quilométrico, longo, antigo, moderno...) NADA de minusculinidades... Quem é você... Que vem a Paris  para sorver  o  ar da  luz  que é  re fle ti da  ao seu redor???

Vi e vivi - Rachel Dorneles

  Hoje faço 50 anos, sobrevivi! Vivi o que é desamor, falso amor e amor superficial. Tudo isso carregado de microviolências.   Fiquei maravilhada com a Comunicação Não Violenta,  quando  a descobri! Sinto que é meu o desafio de aprender e aplicar a empatia. Ao longo da vida, tenho carregado intimamente canhões voltados contra mim, respingando estilhaços  nos outros.   Curar as feridas da violência e transformá-las em humanidade é uma inspiração vinda do exemplo de Nelson Mandela.   Minha sede é de  perseverar  como os nossos indígenas. E de  renascer  assim como fizeram os africanos escravizados. Fico me imaginando nessa ou naquela situação.   Suspeito que haja uma foça interior, uma grande inteligência cósmica que orienta a quem resiste desde dentro de si para preservar a humanidade.