José tratava a si mesmo com desleixo, deixava o cabelo comprido e embaraçado. Sua magreza tornaria qualquer roupa larga demais. Andava tropeçando nas calças, que só se mantinham no corpo por conta de um velho cinto de couro, preso sempre no último espaço.
Nas raras vezes em que saía de casa, as crianças da vizinhança, entre risos de deboche, o chamavam de “náufrago”. Ignorava os olhares dos adultos, mas aqueles pequenos diabinhos lhe entravam na carne.
Uma a uma, as tarefas rotineiras da vida haviam se tornado um estorvo. Demandavam uma energia extraordinária e José, eventualmente, as aboliu. Olhava para si mesmo com assombro, sabia que se tornara um ser estranho, um personagem.
Encontrara o mínimo denominador comum para manter-se vivo. Sobrevivia do que era desprezado pelos outros, comida estragada, água salobra, roupas rasgadas... A casa pequena de madeira herdada do avô era a única barreira à indigência.
Embora fosse pouco frequente, o único traço de dignidade que preservara era cortar a barba quando a sentia pesar demais. Procurava a tesoura enferrujada na bagunça infindável e se livrava dos nós.
José não estranhou quando começou a sentir a barba pesar e viu um emaranhado rígido, parecendo um caroço. Dias depois, quando finalmente se deparou com a tesoura, saiu decidido em direção à janela e espichando a barba com os dedos, tacou-lhe um golpe. Deu um urro de dor e desabou na beirada da janela. Entre dor e espanto viu o sangue vertendo farto.
Ficou ali pendurado por algum tempo. Quando o agudo da dor havia passado foi inspecionar o ferimento. Para sua surpresa não errara o golpe, a protuberância ferida era uma extensão de si. Examinando-a percebeu que se assemelhava mais a um caule de árvore antiga, seca e velha. Debaixo do sangue seco percebeu uma pequena ponta verde. Talvez fosse alguma espécie de fungo exótico, mas parecia mesmo com um broto de folha. Diante desse pensamento, José riu pela primeira vez em muito tempo.
Qual seria o significado daquele achado, estaria morrendo? Estaria acometido por alguma doença obscura? Incrivelmente, a vida na corda bamba, não o preparara para morrer. O pensamento simplesmente não lhe ocorrera, no seu mundo só cabiam as necessidades imediatas. Contudo, aquele acontecimento bizarro o fez deparar com a morte; sentia o corpo fervilhar e, pela primeira vez, temia pela própria vida.
José não sabia explicar o que mudara, mas sentia estar diante de um momento definidor de sua existência. Os dias arrastados e iguais pareciam ter terminado naquele momento.
Odiava ver o próprio reflexo, mas desde que descobrira aquele estranho nódulo o inspecionava todos os dias. A ansiedade de não saber o que ocorria, deixava-o agitado. Apesar disso, nenhum sintoma ou dor lhe afligia. Pelo contrário, com energia fora do comum, percorreu hospitais e postos de saúde. Por semanas, implorara atendimento, queria desesperadamente uma resposta. Conseguiu apenas promessas e nenhuma pista.
Eventualmente, desistiu de obter respostas. Na verdade, se convenceu de que não havia explicação ou tratamento para o que lhe ocorria. Via o pequeno broto crescer, verde e exuberante. Era inusitado, mas parecia cada vez menos ameaçador. Sem ter a quem recorrer e o que fazer a respeito, foi se acostumando com a pequena folhagem.
Certa vez, experimentou arrancar uma folha, sentiu um espasmo no rosto e um filete de sangue vermelho vibrante caiu na roupa. O verde frondoso contrastava com a pele do rosto seca e marcada. Estranhamente, a folhagem intrusa era a parte mais sadia de seu corpo.
Depois de uma noite muita fria, percebeu que as suas folhas haviam perdido um pouco do viço, algumas haviam se soltado e estavam perdidas entre os lençóis. Juntou-as com delicadeza, uma a uma, e as depositou nas raízes de uma árvore especialmente bonita em um jardim próximo. Daquele momento em diante, passou a regá-las uma vez por dia. Por via das dúvidas, também começou a beber água com maior frequência.
Logo, já não conseguia mais ocultá-la no emaranhado da barba. O arbusto encontrara um ambiente propício e crescia muito rápido. José fazia a sua parte para mantê-lo. Aprendera a diferenciar os galhos secos e mortos, que podiam ser aparados, dos vivos e depois desse ritual sentia as energias renovadas. Nunca havia cuidado de qualquer ser vivo. A julgar por seu progresso tinha “mão” para cuidar de plantas.
Pela primeira vez em muito tempo ansiava pelo dia seguinte. Queria cuidar de todas as necessidades de seu hóspede. Passava os dias conversando com a planta, dividindo seus medos e anseios. A certo ponto achou mais do que adequado dar-lhe um nome. Batizou-a Samuel, o nome do avô que não conhecera. Sabia pouco a seu respeito, mas sua imaginação havia atribuído as qualidades mais nobres a aquele homem.
Ao acordar sentia um aperto no peito, tinha muitos pesadelos. Neles, os vizinhos descobriam seu segredo, invadiam sua casa, o arrancavam da cama a socos e chutes e, por fim, tentavam cortar Samuel a golpes de facão.... Acordava banhado em suor e instintivamente lançava as mãos ao redor de si mesmo protegendo Samuel.
O primeiro a perceber foi o padre da cidade. Certo dia, José sentira um olhar de estranheza e instintivamente apertou o passo. Em vão, o padre andava devagar, mas era persistente. Ofegante, José apoiou-se em um muro e desistiu. Consolou-se pensando que caso estivesse morrendo precisaria da bênção de qualquer jeito. Não acreditava em Deus, mas não duvidava de mais nada a esta altura.
O velho perguntou a José porque sempre carregava aquele arbusto para todo lado. Ele permaneceu em silêncio e olhou para baixo, não sabia o que dizer. O padre desconfiado puxou o ramo com delicadeza de dentro da barba. O rosto congelou numa expressão de emoção, ajoelhou-se e imediatamente se pôs a rezar, segurando o terço com força.
Os transeuntes se juntavam ao redor para tentar entender a cena e logo aderiam à corrente de oração. José ficou lá meio bobo, sem saber o que fazer ou dizer. Nunca havia sido objeto de admiração de ninguém. Em sua experiência receber atenção, significava ser hostilizado.
A história ganhou a cidade como o vento e multidões passaram a se formar na frente de sua casa. Deixavam flores e bilhetinhos com orações no portão, presenteavam-no com fartas refeições e, quando passava, todos olhavam com admiração. Da noite para o dia deixara de ser um pária.
Entendendo que estava seguro, aparou a barba bem curta. Todos queriam ver o milagre e José devia isso aos fiéis. Saía de casa sem motivo, apenas para sentir os olhares e as rezas sussurradas ao seu redor. Não custava estar apresentável, já que agora deixara de ser invisível, e passou a tomar banho todos os dias. Durante o banho, enrolava Samuel carinhosamente com uma sacola velha, pois percebeu que ele não gostava de receber água nas folhas, apenas nas raízes.
O peso de Samuel fazia com que sentisse dores na coluna e por isso lhe providenciaram uma poltrona confortável e um pequeno sino. Quando queria sair de casa, bastava tocá-lo e prontamente quatro brutamontes com rostos sorridentes se apresentavam, prontos a leva-lo para onde quisesse ir.
Pessoas da cidade também se revezavam para limpar a casa, cozinhar refeições e até cuidar do jardim outrora abandonado. Em troca José aparecia em suas casas em ocasiões especiais e nas missas de domingo que agora viviam lotadas.
José sentia-se feliz, entendeu que sua vida de sofrimento tinha sido apenas o prenúncio do que viria. Deus ou qualquer que fosse seu nome, o havia escolhido para um milagre. O fizera por meio de Samuel, que agora era constituído de pesados ramos de folhas verde escuras e alaranjadas que quase chegavam ao chão.
Numa tarde qualquer pediu para ser levado ao jardim e lá adormeceu encolhido na poltrona. Ao acordar horas depois, sentia o corpo mais pesado que o usual. Estava com frio e tocou o sino impaciente. Os quatro fortes rapazes tentaram levantá-lo, mas se surpreenderam com o peso, parecia ter aumentado dez vezes desde o almoço.
José sentiu que havia algo estranho, não conseguia mover minimamente as pernas. Removeu a coberta que havia em cima delas e jogou-se para trás como se quisesse negar aquela visão. Não tinha mais pernas e sim grossas e numerosas raízes. Estava condenado, nunca mais sairia dali.
Os pobres rapazes se ajoelharam e começaram a rezar de forma apaixonada. José estava nervoso e furioso, queria mandar que parassem e chamá-los de idiotas, mas não tinhas forças. Apenas chorava enquanto mais e mais pessoas se juntavam aos rapazes.
Um pouco mais calmo, sussurrou a um deles que serrasse as suas pernas ou raízes, afinal já não as usava mesmo. O padre que se juntara a multidão interveio emocionado, seria um ultraje fazê-lo, pois o que seria aquilo se não mais uma demonstração da presença divina?!
A comunidade fora bondosa, todos se mobilizaram para construir um toldo para proteger José (e Samuel) dos elementos. Se tornara uma figura central na vida da cidade, multidões oravam ao seu redor e até peregrinações vinham das cidades próximas.
Mas ele já não se importava, estava esgotado e emagrecia a olhos vistos. Perdera a vontade de tudo! Cansara dos olhares de admiração e da devoção apaixonada, sentia saudade dos tempos em que era invisível e podia ir e vir quando bem entendesse. Se sentia prisioneiro de Samuel que agora se enroscava por todo o seu corpo, apenas o rosto permanecia visível.
De madrugada aproveitava para chorar sozinho sem que algum fiel abestalhado se ajoelhasse para rezar diante da bela cena. Tinha ímpetos de xingar as pessoas, de xingar o padre e xingar a Deus! Pensava em como seria divertido horrorizá-los, diria que era um servo de Satã e todos iriam embora deixando-o finalmente em paz...
Mas não tinha coragem de fazê-lo, mais do que nunca dependia de todos. Quase sem poder se mexer, precisava que o alimentassem e, por mais que desprezasse a todos, ainda temia a morte.
Enquanto José definhava, Samuel crescia forte e impetuoso. A essa altura haviam derrubado o portão da casa de José e das casas vizinhas para comportar a massa crescente de fiéis que vinham de todos os lugares em busca de curas e bênçãos.
Esse estado de coisas permaneceu até o dia em que José acordou envolto por uma enorme casca de madeira, Samuel o envolvera completamente. Já não ouvia cânticos e nem preces, fechou os olhos e apreciou o silêncio enfim!
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