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Pedreiro - Elaine Fonseca





Antes de raiar o dia Mariano já se ia em um ônibus, de pé. No chão, entre as pernas, uma valise surrada com algumas ferramentas mais leves. Encostado ao corrimão, ele ia meio que cochilando, sacolejando junto com a lotação, esbarrando em tantos corpos que se amontoavam para chegar ao destino. Era uma hora naquele trajeto, depois mais um trem e duas baldeações de metrô. Saía às 4 horas da manhã de casa para conseguir chegar às 7h no trabalho. 

  • Atrasado outra vez, Mariano? Desse jeito vou ter que descontar. - falou gestor da obra. 
  • Desculpe, dotô, o senhor não viu na TV? O trem quebrou outra vez. Deixou todo mundo na mão. 

Mariano trocou de roupa às pressas, engoliu um pão amassado com queijo que trazia na  bolsa, mandou pra dentro um café já meio frio e foi-se para as alturas. Lá, no alto, ele se sentia em paz. Ver a cidade de longe, as pessoas tão minúsculas era, de fato, seu ponto alto do dia. Ao contrário de muitos, ele não tinha medo de altura. 

No fim do dia ouviu alguém dizer que uma tal reforma da previdência ia resolver o rombo e consertar os rumos do país. Parou na escuta, ascendendo um cigarrinho de palha. 

  • E a gente, Mathias? - perguntou Mariano - o que vai acontecer com a gente nessa tal reforma? Você tá achando mesmo que esse povo se preocupa com pobre, rapaz? - e saiu. 

A verdade é que Mariano não tinha tempo pra se preocupar com os rumos do país. Os 5 filhos menores e esposa, que trabalhava o dia inteiro como empregada doméstica, necessitavam de atenção. 

  • Pobre não tem tempo pra pensar não. - pensava mariano ironicamente. 
Certa vez viu-se em uma situação delicada no culto da igreja que a esposa gostava de frequentar. 
  • Quem aqui crê em Jesus Cristo Nosso Senhor? - perguntou o pastor aos gritos, gesticulando os braços com força. - Você, Mariano, você crê em Jesus?! Você aceita ele como seu guia? - o pastor chegou mais perto com o microfone nas mãos, inquirindo o pedreiro. 
  • Creio, pastor. - respondeu mariano de cabeça baixa. Não queria contrariar ninguém, tampouco constrager a esposa que era tão devota. 
  • Jesus têm te ajudado, Mariano? Fala pra esse povo da igreja que tá te escutando, o que ELE tem feito por você, meu irmão. - o pastor falava cada vez mais alto, colocando a mão direita sobre a cabeça de Mariano e antes que ele pudesse responder, o pastor continuou -  Ele tem botado comida na tua mesa, é ELE quem te dado trabalho. 
  • Né não. 
  • Como disse, irmão? - o pastor pareceu não entender a frase do rapaz que continuava de cabeça baixa. 
  • O senhor me desculpe, pastor, mas sinceramente? Eu acho que nem Jesus Cristo nem esses seus governante aí tão ligando muito pro que tá acontecendo aqui com esse povo sofrido não. O senhor fica aí falando essas bobagens e no fim de cada culto pede nosso dinheiro suado. Pede que a gente divida com a igreja o pouco, a miséria que a gente ganha. - a essa altura a esposa de Mariano já estava carregando as crianças pra fora da igreja e puxando Mariano pela manga da única camisa de botão que ele tinha, item doado pelo patrão dela. 
  • Mariano, você tá doido? O que foi que aconteceu hoje na obra que você voltou desse jeito?
  • Oxente, que jeito, Rosi? Jeito nenhum não. Só acho muita safadeza a gente vir nessa igreja há mais de dois anos e não tem uma ajuda pra nós. Nada. ESse pastor tá igual esses políticos, promete promete e não faz nada. Me deixe. 

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