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O Esquartejador - Eriane Gonçalves


Havia amado mulheres delgadas e brancas. Abandonou-as, porque se tornara arriscado. Sentia falta de suas partes, sempre tão saborosas; porém, agora, seu desvario eram palavras. Queria-as assim como quis mulheres: as partes, o tecido, a superfície, as entranhas. 

Iniciou com leituras minuciosas. Estudou textos, parágrafos, frases, orações, até chegar à palavra, ao radical e ao morfema. Sentindo-se seguro, passou a escrever todos os dias e a, minuciosamente acadêmico, desescrever: dissecava e retalhava parágrafos, frases, orações. Ao se deparar com a palavra, acariciava seu radical, aglutinando-se a ela lentamente. Ao violar o tema, em injustapostas posições, atentava para não haver fecundação. O inóspito e a aridez remetia-o ao gozo. 

Amava o texto delgado e branco. Cada elemento regressivamente estudado: o todo não lhe interessava. Seduzia-o a frase morficamente perfeita. Penetrar as partes era sua lascívia. Viveu assim a lacerar e foi feliz. 

Certo dia, um mal-estar o assaltou. Sentiu-se nauseoso. Pareceu-lhe que seu corpo continha órgãos descoordenados. Não conseguiu chegar ao banheiro, jatos de vômito esbraveceram de dentro dele. 

Não eram azeitonas misturadas à bile, mas palavras: substantivos, adjetivos, infinitivos verbos, preposições, artigos indefinidos. Insuportáveis conjunções e advérbios teimaram em não sair pela boca: palavras putrefeitas. Insubordinadas orações expelidas ao som de frenéticas onomatopeias. Todas aquelas que, deliciosa e disciplinarmente, matara. 

A ajuda chegou quando a rua estava inundada. A ambulância foi chamada pelos moradores horrorizados com a fedentina. Internado, constatou-se desidratação profunda. Por pouco não havia morrido, disseram-lhe os médicos.

Escutar ter estado tão próximo do fim, ceifado da vida, fez com que tomasse uma resolução: voltaria para seus antigos amores. Bundas, coxas, xotas, peitos nunca lhe haviam feito mal. Eram sempre tão bem digeridos, degustados em saborosos carpaccios ou cozidos em vinho tinto. 

Sim, retornaria ao princípio, porque, definitivamente, havia sido bem menos perigoso amar mulheres, pensou antes de cair num sono reparador.



 

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