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Sombras e Memória - Matheus Montalvão

Lembro que um divocê me olhava diferente. Admiração queimava em fogo baixo quando teu olhar cruzava o meu. Essa memória vai cada vez mais fundo rumo o esquecimento inevitável. Ainda lembro e guardo minhas lágrimas em silêncio. Toda vez que seus olhos pousam nos meus há apenas gélida pena. 

Não sou mais quem eu era, os anos tão impiedosos quanto inevitáveis marcharam sobre mim deixando sua marca a ferro e fogo. Um dia eu havia lhe perguntado, dedos correndo por pálida e delicada face, se essa mão calejada e áspera lhe machucava. Você respondeu beijando os cinco dedos e pousando minha me em teu rosto. Agora o que sobre é o fantasma débil e caquético daquela mão e do homem que já fui. É frio e cortante o entendimento de que a morte não irá vir cedo. A certeza do lento definhar e assalto ao corpo moldado nos embates constantes. 

Sombras não tem o direito de existir frente à Luz. Sempre foste o meu sol, uma ancora cósmica sempre me trazendo de volta, mas hoje eu gostaria que na ultima vez você tivesse soltado minha mão. É um ultimo desejo egoísta, não me importando se me resta o direito de ser egoísta ou orgulhoso. Assim como memórias tocadas pelo meu Sol, eu deixo meus dedos afundarem fundo e se ancorarem fundo nesse pedido egoísta. 

Há um cansaço, uma dor que é sentida em meus ossos com todo toque seu, que um dia já fora firme e cálido e doce e gentil. O que me resta é a firmeza, tão diferente e ainda assim tão a mesma. As vezes isso penetra fundo em meu peito e me faz acreditar, acreditar que esse eclipse um dia vai acabar. Que eu vou voltar a ver teu sorriso. Fomos esquecidos por nós dois meu amor. O que nós diríamos, os “nós” de tanto tempo atrás, diríamos para nós agora?
Lembro que meus lábios um dia tocaram leves como o pousar de borboletas pelo teu rosto. 

Lembro-me do acontecimento, como uma mancha na eterna tapeçaria que forma nosso destino, mas não posso evocar a sensação. Foi levada nessa correnteza que nos arrebatou e nos separou. Como quase tudo que nos era comum que nos entrelaçou nessa jornada também se perdeu. Como até mesmo a sua voz se perdeu, trocada por cortadas gélidas, ordens inexoráveis e comandos. 

Como um gotejar eterno eu pude ver você desaparecer na minha frente. Dia a dia havia cada vez menos, mês atrás de mês eu via impotente seu desaparecimento e entrando ano e saindo ano eu pude ver aquela dor infiltrando em teu peito cada vez que nossos olhares se cruzavam. O amor lentamente de certeza caminhando para dúvida. Agora caminhamos para o rumo do esquecimento: eu, você e o nosso amor. O tempo ainda é o capataz cruel, o executor em jubilo ao torcer a faca, ao lentamente extirpar essa alegria que havia pousado em nossa casa. 

Lentamente eu perco o seu amor, perco minha vida, perco minha razão e minha alegria e entre dentes cerrados eu sou obrigado a assistir, a engolir poderoso veneno. Lembro-me que um dia eu fui feliz ao seu lado e que você foi feliz ao meu.

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